Atalaia e Viçosa - Antônio Aurélio é o reconhecido mestre Tonho Sapateiro, da zona da mata Alagoana, importante para Atalaia, sua terra natal, e Viçosa as duas cidades que lhe abrigaram na infância e na juventude e que lhes rendem o respeito por sua trajetória e pela arte de sua “purizia” matuta. É deveria mesmo ser um Patrimônio Vivo da cultura popular alagoana.
A poesia do mestre Tonho, no seu estilo inovador, ora engraçada, ora séria, ora denúncia ora riso tem caminhado e atravessado às fronteiras alagoanas; passando de boca a boca como as histórias infantis, elas seguem pela tradição oral. Mas diferente das histórias, essa arte tem nome e sobrenome que precisam e merecem serem cunhados entres os melhores cordelista das Alagoas.
Entre 1991 e o ano 2004, o Mestre continuou a produzir ininterruptamente, o que deixa uma lacuna de mais de uma década desde a última edição, e com isso uma significativa quantidade de poesias inéditas.
O poeta sapateiro que emoldurava palavras...
Depois que se alfabetizou aos 45 anos, Antônio Aurélio de Morais criou o hábito de estampar na parede as palavras que lia em dicionários Luiz Costa Pereira Junior
O sapateiro Antonio Aurélio de Morais morou até a sua morte em Atalaia, mesma cidade da Zona da Mata alagoana em que nasceu. Órfão, teve de se virar desde muito cedo para sobreviver, o que lhe garantiu o apelido de Tonho Lambe-sola. Poeta, tem a paixão, o ritmo e a inventividade cronista de um repentista de primeira linha.
Analfabeto até os 45 anos, recusa-se - em alguns momentos de maneira afetada - a versejar na língua portuguesa tal qual é normalmente ensinada pelas escolas. Daí sua "poesia" ser grafada "purizia" e seu léxico ser tomado pela variante caipira do idioma.
O contato com o abecedário, no entanto, foi como se uma janela da arte tivesse se aberto. Só depois de alfabetizado é que passou a compor versos matutos, que antes arranhava de memória.
Mas Tonho encantou-se de tal maneira com as palavras sorvidas em seu minidicionário Aurélio, que cultuou o hábito de emoldurar, nas paredes de seu barraco, palavras escritas a lápis, como "pélago", "palinódia", "obumbramento" e "bestialógico", entre dezenas de outras.
Com a mesma dedicação, mantém, intactas num quadro-negro pendurado em sua sala, as lições gramaticais que aprendeu, com Bechara, Cegalla e Olga Pereira. Para rememorar, sempre que precisa, e desobedecer, toda vez que verseja.
Cumi qui quase mi acabo
Pão qui o diabo amassô.
Agora como o diabo,
Já qui do pão num sobrô.
Quem me informa da existência do poeta-sapateiro é outro poeta, Sidney Wanderley, ele mesmo considerado um dos melhores vates nordestinos da atualidade, a ter a ousadia de manter-se no Nordeste e a vibração de tirar da sombra nomes da margem poética, como Tonho Lambe-sola.
Poesia-construção
Insistentes como Sidney fizeram Tonho virar obra impressa, assim como Eris Maximiano e Waneska Pimentel recriaram seus versos no teatro, em julho.
Foi assim que saiu a mais recente edição de Versos de um Lambe-sola (Edições Catavento, 2007, contato: 082 3032 8012), coletânea comemorativa de seus 80 anos de idade.
A obra havia sido lançada originalmente quando o poeta matuto completara 54 anos, na Maceió de 1981, e foi reeditada em 1991. Na mesma Maceió em que Tonho começou a alfabetizar-se, nos anos 70.
Foi com a venda das edições desse livro que Tonho comprou a primeira casa de tijolo e telhas - até então, vivera em casebres de taipa e chão de barro batido. Ao longo da vida, Tonho Lambe-sola teve hábitos nômades, circulou pelo interior nordestino emendando sapatos dos 10 aos 75 anos, para sustentar-se, e fixou-se em várias cidades.
Tônicas
O sapateiro Antonio Aurélio intui que, com a poesia de Tonho Lambe-sola, qualquer imagem se torna possível, chegando à conclusão de que o verso é uma possibilidade de construção - e de cristalização - de realidades vividas ou surrealisticamente imaginadas pela mente do poeta:
Bem inrriba dum pé
di macambira
As abêia deu leite pulos fundo
A ispada di Dão Pedro Sigundo
Foi achada nu bucho da traíra
Muita gente inda diz que é
mentira
Qui a rapôza num drôme cá
galinha
A priguiça avuô um trem da
linha
Inguliu quatro cabo di inxada
Muriçoca morreu impazinada
Trabaiando na caza di farinha.
Homem de seu tempo, Tonho tem na rima a referência da estrofe, mas entende que poesia é, antes de tudo, manufatura, trabalho - principalmente, é fruto de insistência, a mesma que caracteriza aqueles que batalham para sobreviver.
Daí vem seu desprezo pelo maneirismo poético, pelos voos de efeito de caráter literário, bem como a crítica que bem podemos aplicar a parte considerável da produção poética
contemporânea:
É mio nada fazê
Du quê tá fazendo nada
Ô então vá prá enxada
Pruveite sua neigia
Qui cabeça di jumento
Nunca pode tê talento
Mode fazê purizia.
O poeta faz do poema bem-humorado ou do verso fescenino (de referências obscenas ou licenciosas) o pretexto para traçar a crônica daquilo que testemunha. Bom humor para falar do valor do salário mínimo:
Quem ganha um salaro mimo
Nunca tem buxo quebrado
Nunca morre impanzinado
Nem perciza defecá
Si vancê ganha um salaro
Nem perciza sanitaro
Nem papé mode limpá
A crônica das notícias que escuta, como sobre a da chegada do homem à Lua:
Tenho seis fio piqueno
I a muié cum buxão
Mai num tô ligando não
Eu dêxo tudo na rua
Daqui num quero mai nada
Já to cá trôxa rumada
Prú mode morá na lua.
O verso fescenino na sátira aos efeitos do Viagra:
Eu tomei ele à tardinha
Passei a noite todinha
Cá muié nu vai-i-vem
A coitadinha gimia
A impregada substrituía
Mai num guentô tombem.
Ah, a propósito, o sapateiro-poeta, que emoldura palavras e preserva o quadro-negro com as suas aulas de gramática, tem medo de injeção. "Só na veia poética", explica o autor alagoano.
[HISTÓRIA: LITERATURA: LAMBE-SOLA] Luiz Sávio de Almeida. A reedição do Mestre Tonho Lambe-sola
Este artigo foi publicado em O Jornal (Maceió) , no mês de setembro de 2007
A Sociedade dos Amigos de Viçosa encontra-se em expansão, espécie de atalaia cultural sobre o famoso Vale do Rio Paraíba. Ela começou a atuar no espaço de Viçosa e terminou adentrando Atalaia, onde foi encontrar o Mestre Tonho Lambe-Sola. É muito bom que a Sociedade abra seus braços para compensar a falta de ação ao longo do Vale e, neste caso, com uma legitimidade a toda prova, pois o Mestre Tonho cresceu no Riacho do Meio. É também de valia registrar, que a Sociedade sabe abrir um bom rol de parceiros, contando, neste caso, com a participação da Federação das Indústrias do Estado de Alagoas através, sobretudo, do interesse do seu Presidente. É importante destacar a Federação das Indústrias neste lançamento. Talvez fosse a oportunidade de seu Presidente examinar a possibilidade de participar mais diretamente da vida editorial alagoana, instituindo - quem sabe? - uma verba anual para compor no financiamento de impressões de textos que discutam Alagoas, numa linha editorial sem preconceitos de matizamento ideológico, importando, apenas, a excelência do texto. Tudo a partir de uma seleção criteriosa que poderia ser realizada por um Conselho ou coisa semelhante.
O fato é que estamos na 3ª edição dos poemas de Antônio Aurélio de Morais, contando com uma seleção realizada por Sidney Wanderley, autor, também, de esclarecedora orelha. Mestre Tonho Lambe-Sola aflorou em grande parte no contexto de artistas e intelectuais ligados à esquerda, especialmente do PCdoB. Rara a oportunidade em que se deixava de ouvir o poema Salário Mínimo, declamado pelo Paulo Poeta. Não me parece que Mestre Tonho tivesse radicais inclinações à esquerda. No entanto, a esquerda percebeu a sua genialidade: parodiando Thompson, ele construía uma poesia tipo from bellow.
Não resta dúvida que seu poema sobre o salário mínimo, fascinaria a esquerda.
A irreverência da abordagem e a forma como é montada a grade de situações, torna, sem dúvida, o poema uma espécie de clássico, no sentido de que assume as características do que se costuma chamar de obra-prima. A expressão é chata – não conheço uma obra-tia - mas o texto é muito bem construído, chega na luta entre o viver e o morrer, numa tensão em que o salário é o motivo. É um texto onde situações reais são levadas ao fantástico e onde, inteligentemente, ele se transforma em uma extraordinária fala sobre a sociedade:
Só tem uma solução
Prá nois pobre brazilêro
É inguli osso intero
Qui nem avestrui ou ema
Ô antão num cumê mai
Tapa a porta de trai
Tá rizurvido o probrema
Nu mundu tem munta arma
I jeito di matá gente
Porém a arma valente
Qui mata sem cumpaxão
É essa arma infeliz
Qui si chama in meu Paiz
Salaro mimo, patrão.
O livro do Mestre Tonho estará na praça!, gritou Maria Lopes espevitada, sem se lembrar de que Cascudo já havia estabelecido a inutilidade assumida por um instrumento que se chamava de espevitadeira. Maria Lopes tem extraordinário bom gosto e toda a minha admiração.